terça-feira, 16 de novembro de 2010

Debate ou D.R?

"Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas
eu já teria desistido da vida."

José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira.


Há tempos insistiam naquele rodenir. Ambos hipócritas ao ponto de criticar abertamente a sociedade e seus diversos instrumentos de repressão individual. Era preciso ir com calma, mas aquilo já durava quase um ano e nada acontecia. Só conversas, olhares, e emails: músicas aqui, poemas ali, declações - sem pudor ou piedade. Ele parecia sempre muito além. Ela parecia que jamais iria chegar lá.

Ela viu na internet: ele iria mediar um debate sobre o filme "Ensaio Sobre a Cegueira". Ela iria, claro. Estaria lá, como sempre esteve, e sempre de surpresa, sempre sem avisá-lo. Entrou na sala. Um cara, com controle remoto na mão, avisou: ele estava preso numa reunião e não teria mais certeza se poderia ir, mas faria de tudo. Ela sabia que ele faria mesmo, mas provavelmente não conseguiria e era melhor que ela perdesse as esperanças. Ele adorava conversas, debates, discussões, pesuasões, seduções... Não, 'seduções' está mal colocado e já é uma divagação da narradora que aqui vos fala. Embora ele claramente se amarrasse nisso, não faz parte do contexto.

O fato é que ela assistiu o filme inteiro frustrada. Por sorte, o filme era mesmo bom - Saramago, só pode! - e, no fim, o rapaz um tanto despreparado desligou o telão lentamente. Não sabia muito bem como começar aquilo.

De repente a porta abre e, segurando dezenas de pastas, folhas xerocadas e livros, lá vem ele. Ironia do destino: foi ele quem chegou sem avisar, sem que ela pudesse preparar novamente sua psiqué para absorver a presença dele.
Pedindo desculpas, olhando para o canto direito, ele avista ela. E, como esperado, esbugalha os olhos quando a vê, e depois vira, disfarça. Pensa que disfarça, aliás. Mas o momento de constrangimento não dura muito tempo:
- Já assisti esse filme milhares de vezes e não me canso. Cada vez que vejo de novo, parece que é a primeira. Sempre há algo novo a se observar nele - ele começa... - Não quero falar muito agora porque, antes, quero saber que impressões eles causaram em vocês.
Lá atrás, um rapaz de cabelos compridos, tiara de pano, camisa vermelha com um machado na estampa, levanta os braços.

- Acho que esse filme fala sobre como a sociedade hoje em dia está cada vez mais cega e que, em certo ponto, chegaremos numa cegueira total. Poucos poderão ver e quem puder será visto com certa anormalidade, ou como grandes guias. De um modo ou de outro, distorções que não poderíamos permitir mas, infelizmente, já permitimos.
Bingo!

Começaram então os debates. Para valer. Ela ficava calada, apenas prestando atenção. estudos antropológicos, teorias sociológicas, apontamentos literários... aquelas pessoas eram realmente inteligentes e tinham mesmo muito o que dizer. Ela anotava em seu bloquinho jornalístico tão bagunçado como sua vida. Anotava compulsivamente aquelas referências alemãs, francesas, inglesas até..

No canto esquerdo, mais uma garota completava:
- E nessa sociedade cada vez mais cega, cada vez menos as pessoas enxergam as outras, olhando sempre e só para elas mesmas.

Individualismo: outro mote para discussões sem fim.. que foram cessando e cessando, até um silêncio total indicar que era a vez dele - sim, ele mesmo - dar seus apontamentos sempre impactantes.

Mas então ela, timidamente, decidiu levantar a mão.

E ela nem tinha pensado muito. Na presença dele, ela nunca raciocinava direito porque, do contrário, perderia a coragem de dizer o que quer que seja. Se intimidava com a presença dele mas, ao mesmo tempo, não se permitia ficar initmidada por muito tempo. Levantava a mão sempre e o que saísse era lucro. Desta vez, não seria diferente:

- Sabe o que eu acho? e peço desculpas se estiver viajando -não sou da área "Ok, agora sim demonstrei que não quero ser a dona da verdade, ou que sou a pessoa mais insegura da via láctea, mas tudo bem".- Bom. As pessoas não podem enxergar nesse filme, mas também não podem ser vistas, e sabem que não serão vistas. Isto, particularmente, me remeteu à questão: se as pessoas não estivessem nos vendo, o que seríamos capazes de fazer?
O rosto dele sequer liberou uma expressão, nenhum assentimento. Quando terminou de falar, ela percebeu o quão literal foi aquilo que disse - que bem poderia ter sido de propósito, mas ela não tinha essa genialidade toda. Foi mesmo aleatório, ou inconsciente, foi seu super, alter, e id ego falando ao mesmo tempo. "Juro que foi sem querer, não queria te provocar", pensou, rezando para que ele pegasse sua prece telepaticamente.

Mas ele não pegou e, mais que isto, decidiu até dar prosseguimento:

- Pois é. As pessoas ali poderiam fazer o que quisessem que não seriam vistas pelas outras. e mesmo que as outras soubessem o que estava sendo feito, apenas pelo fato de saberem que não poderiam ser vistas já as encorajava de fazer o que quer que seja. Podemos ser o que quisermos e liberarmos o que quisermos em nós, mas ficamos tantas vezes presos pelas aparências que, em raras vezes liberamos tantas verdades, com tanta profundidade, como neste filme. Temos medo, medo de não sermos aceitos como somos. Preferimos deixar que as pessoas nos conheçam por partes, cada um com uma parte maior ou menor, mas sempre em 'partes'.

Mas buscamos subterfúrgios -ele adorava dizer essa a palavra- e a internet é um deles. Nós falamos na internet com as pessoas o que sabemos que jamais falaríamos pessoalmente e tomamos para nós a realidade virtual em detrimento da real.

Tudo nela começou a explodir, porque mesmo sem ter certeza, só vinha algo em sua mente: "Ele quer guerra".

- Olha, desculpa, mas eu discordo. Não importa se você está na internet ou pessoalmente, você sempre vai ser uma pessoa real e, nos dois casos, estamos tratando de realidades. A não ser que elas mintam porque assim querem...- rebateu, plenamente consciente do quanto estava demonstrando passionalidade naquela discussão que deveria ser teórica. - Quer dizer que, na sua opinão, as pessoas são mentirosas na internet? -
- Quero. A partir do momento em que elas mostram pela internet o que elas jamais mostrariam pessoalmente.
- E por que elas jamais mostrariam? Porque é tudo mentira?
- Em partes sim. As pessoas mentem pessoalmente ao fingirem uma normalidade que não têm. E mentem virtuamente ao fingir ações e sentimentos que não teriam coragem de agir.
- Elas mentem com sentimentos que não teriam coragem de sentir?
-Sentimento, sentem. Mas sabem que não terão coragem de agir a partir deles. A não ser que toda a sociedade ficasse cega
- Ou, a não ser, que eles fossem verdadeiros o suficiente para se enxergarem.
- Mas o que você entende por 'verdadeiros'? Defina o que é a verdade..

Ok. Foi ali, naquele dia, naquela sala, naquele debate, que ela descobriu o quão longa seria a estrada a seguir. Quão inúmeras seriam as DRs que teria sem que, sequer, houvesse um relacionamento entre eles. Ao menos não um relacionamento no sentido visível da história.

Ou pelo menos era o que achava, enquanto tentava ver o que estava por vir além daquela neblina toda que eram eles dois...

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